Em 18 de maio de 1978, a pequena Araceli Crespo foi brutalmente assassinada após ser sequestrada e violentada. Vinte e dois anos depois, essa data foi consagrada como o Dia Nacional de Combate ao Abuso e Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes, instituída pela Lei 9.970/2000, com o objetivo de promover ações que alertem a sociedade sobre esse tema, que infelizmente continua sendo, em grande parte, invisibilizado.
Dados do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos referentes a 2018 e 2019 revelam que o Disque 100 recebeu aproximadamente 17.000 denúncias de violência sexual contra crianças e adolescentes. A maior parte dessas violações ocorre no ambiente doméstico, sendo que pais e padrastos representam 40% dos suspeitos informados, e 82% das vítimas são meninas. Isso demonstra que o abuso sexual infantil e adolescente frequentemente acontece dentro de casa e é cometido por pessoas próximas à vítima.
Nos casos em que o abuso sexual é perpetrado por um dos genitores, é comum que o fato seja apurado na esfera penal e tenha repercussões no direito de família, impactando questões como guarda e medidas protetivas de urgência previstas na Lei Maria da Penha. Contudo, essa multiplicidade de processos expõe a criança ou adolescente a uma revitimização, um processo doloroso e traumático.
A doutrina jurídica diferencia a vitimização em três níveis: (i) vitimização primária, onde a vítima é diretamente afetada pelo ato criminoso; (ii) vitimização secundária, quando a vítima primária sofre as consequências do contato com o sistema judicial, como a burocracia que a obriga a repetir seu depoimento várias vezes; e (iii) vitimização terciária, onde a vítima é submetida a um sofrimento excessivo além do previsto pela lei.
A Lei 13.431/2017, que estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência, reconhece a condição peculiar de crianças e adolescentes como pessoas em desenvolvimento, prevendo medidas para evitar a vitimização secundária, como a realização de depoimentos especiais e a proibição de repetição desnecessária desses depoimentos.
Apesar dessa legislação, ainda existem falhas na proteção das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual intrafamiliar, como a demora na coleta de depoimentos e a exigência de múltiplas oitivas em diferentes contextos, como perícias e estudos psicológicos.
Uma solução processual para evitar essa revitimização é a utilização da prova emprestada, prevista no art. 372 do Código de Processo Civil, que permite o uso de provas de um processo em outro, evitando que a vítima precise repetir seu relato. Além disso, é crucial que a oitiva especial da criança ou adolescente seja priorizada no âmbito penal, para que essa prova possa ser utilizada em outros processos relacionados, como os de guarda e visitas.
Em um caso concreto de possível abuso sexual de uma criança por seu genitor, ocorrido em 2019, a oitiva especial só foi realizada dois anos depois, em 2021, após a criança já ter sido submetida a um estudo psicossocial no contexto de uma ação de guarda. Durante esse tempo, a criança foi exposta a visitas monitoradas pelo genitor, o que lhe causou traumas significativos. A juíza responsável pelo caso, ao avaliar o estudo psicológico realizado na ação de guarda, decidiu que uma nova oitiva agravaria a situação emocional da vítima e, por isso, optou por não realizá-la.
Esse caso ilustra a necessidade de maior agilidade e sensibilidade por parte dos profissionais envolvidos na proteção das crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual. Embora a Lei 13.431/2017 represente um avanço, sua efetividade depende da aplicação prática, garantindo que o sofrimento das vítimas seja minimizado e que a justiça seja alcançada sem causar mais danos.